“O sonho encheu a noite. Extravasou pro meu dia. Encheu minha vida e é dele que eu vou viver. Porque sonho não morre” (Adélia Prado)

18 de ago. de 2010

Contigo aprendi...

(Amor com Amor se paga)


- Sueli Gallacci



Foi amor à primeira vista, hoje eu sei e não posso negar. Não fosse por aquele par de olhos de mel fixados nos meus, eu não me entregaria tão facilmente. Sempre levei fama de durona, e me orgulhava disso. Conhece o tipo que não se deixa enganar pela primeira impressão? Que bota o juízo no meio de tudo deixando o coração bem de ladinho? Pois é, eu era assim...

Digo “era” porque minhas faculdades inteligíveis e ponderativas acionáveis ao estabelecer relações lógicas, estavam sensivelmente abaladas. No entanto, ainda restava um tantinho de minha faculdade de avaliação para julgar que tudo poderia mudar daquele dia em diante, desde que entrei correndo naquela loja fugindo da chuva de dezembro.

O vento havia levado meu guarda-chuva, e meus pés estavam encharcados pelas poças d’águas que bravamente atravessei à caça de um taxi – objeto extinto na cidade em dia de chuva.

Soube logo que botei o pé fora da cama que o dia não prometia. Meu carro estava no concerto, o despertador não tocou, e ainda por cima, no corre-corre matutino, esqueci-me completamente de apanhar a pasta com os relatórios que havia levado para casa no dia anterior – quase tinha virado a noite analisando-os, vale lembrar.

Isso sem contar a tremenda bronca que levei do meu chefe quando apareci no escritório atrasada e sem a maldita pasta! E depois o temporal que desabara bem na hora que havia decidido sacrificar o meu almoço pelos tais relatórios. Eu nunca estaria de volta a tempo se não conseguisse um taxi nos próximos cinco minutos!

Estava justamente pensando nisso quando senti aquele olhar no interior da loja. Eu não sei porque topei entrar naquele jogo do vamos-ver-quem-desvia-o-olhar-primeiro. Acho que de início foi só um tipo de fuga, queria me concentrar em outra coisa que não fosse os infortúnios daquele dia. O fato é que funcionou. Pra ele.

Que loucura!... Eu estava mesmo inclinada a levá-lo para casa!

Tiraria a tarde de folga e bay bay relatórios – planejei em meio a meu surto de imprudência. Qual a duração média da validade da bronca de um chefe?... Convenci a mim mesma que certamente duraria mais do que uma tarde inteira e sorri para ele. Ele retribuiu. Primeiro com os olhos, depois com o corpo todo.

Tomei como um convite para eu me aproximar um pouco mais. Agora que o gelo havia sido quebrado, decidi que fosse qual fosse o seu nome, eu o chamaria de Nicolau: era dezembro e o nome me pareceu sugestivo. E além do mais, que importância tinha o nome frente ao ato em si? Teria muito mais a me arrepender se aquela experiência inteiramente nova não desse certo.

A fim de não haver mal entendidos, achei por bem soltar a língua logo que chegamos e proferi meu bem elaborado discurso do “nesta casa mando eu”. Deixei bem claro que não estava habituada a dividir espaços, pois nunca abri mão de minha solteirice convicta e irrevogável. Não tinha acordo previsto, e por hora, o melhor mesmo seria ficarmos na base do “cada um na sua”.

Portanto, isso implicava dele aceitar pacificamente, ou não, meu lado egoísta de ser, assumo, mas disso dependia todo o sucesso do nosso convívio sob o mesmo teto.

Fui, também, mais específica, tal como: ninguém dorme na minha cama, ninguém ocupa meu lugar no sofá, ninguém senta à minha mesa, ninguém emporcalha meu tapete, ninguém fuça minhas coisas e etc., etc., etc...

Claro, teríamos nossos momentos, isso era circunstancial e consequente. E se ele fosse paciente com minha lentidão ao adaptar-me a novas situações, poderia até serem satisfatórios, porém, não devia esperar muito de mim.

Daí, como quem cala consente, tomei seu silêncio como aceite.

Tolo engano. Acreditariam se eu dissesse que todos aqueles meus mandamentos só vigoraram por uns michos vinte minutos?

Podem acreditar.
 
Todo meu blablablá veio por terra tão logo ele descobriu que ali poderia ser, e de fato era, seu novo endereço. E ainda por cima, mais tarde ele viria a detonar meus cartões de crédito. Mas deixemos isso para o final.

É inacreditável como a vida nos parece tão monotonamente repetitiva, às vezes. Lá estava eu novamente, às sete da manhã, debaixo de um dilúvio, com um pneu furado e sem um tostão no bolso. (acabava de descobrir que havia esquecido a carteira em casa).

Minha mãe sempre me dizia que confusão é como banho frio: primeiro não se quer entrar, depois se acostuma e não quer mais sair.

Já que é assim, vou tirar logo o dia inteiro de folga – decidi. Abandono o carro nesse lugar proibido e volto para casa a pé. São só alguns quarteirões e chuva não quebra ossos. Não aparecendo no escritório, economizo a bronca do dia, e depois, faz alguns meses, desde a última chuva, que não desapareço sem deixar pistas.

Mas, não seria completamente irresponsável desta vez. A primeira coisa que faria ao chegar, seria enviar um e-mail à fera: de conteúdo mentiroso, porém, convincente. Quem sabe até falaria a verdade (dei uma risadinha sarcástica por dentro).

Ainda no corredor, tirei os sapatos e despi-me quase completamente da roupa molhada a fim de não molhar meu tapete das Arábias. Assim que entrei, vi o Nicolau deitado preguiçosamente de barriga para cima no meu sofá de puro linhão italiano; dormia o sono dos justos.

Foi quando a questão me veio à tona: como ele podia levar a vida de maneira tão simples e descomplicada enquanto eu tinha que entrar na arena e matar um touro por dia para sobreviver?

Então, me caiu a ficha. 

Eu também podia e só dependia de mim. Eu, que relutava tanto em compartilhar, ansiava secretamente voltar para casa e receber toda aquela atenção e afeto que ele insistia em me dedicar, mesmo sem o meu consentimento. Ele não era o paradoxo da minha racionalidade como eu teimava em denominá-lo. Nem a figura representativa do meu primeiro ato insano. Era um ser incrível e especial que havia me ensinado coisas. Coisas tão valiosas que nem o melhor salário do mundo pode comprar. E estava mais do que na hora de eu fazer a lição de casa.

Peguei o telefone e liguei para o meu chefe. Mal pude esperar que ele dissesse 'alô' para despejar tudo há muito entalado: disse o quanto ele era insuportável e mesquinho, e que preferia preencher a vaga de balconista da padaria da esquina a ter que olhar para cara dele novamente. E essa era a mais pura verdade!

Depois de bater com o telefone na cara dele, deixei-me desabar no sofá, aliviada. Nicolau acordou com o solavanco e se espreguiçou lentamente.
 
Foi neste momento que eu vi a minha carteira, meus documentos e todos meus cartões de créditos espalhados pelo tapete. Estavam comidos pela metade, retorcidos, irreconhecíveis.

Minha primeira reação foi de espanto. Depois de incredulidade. Por fração de segundo provei da terrível sensação de não mais existir. Sem emprego e sem documentos, era como se tudo que eu representava, tudo que construíra, tinham restado em cinzas.

Olhei imediatamente para ele cobrando uma explicação. Ele se encolheu um pouco, mas depois me encarou, era valente.

Então não pude mais me conter e explodi numa gargalhada!

Foi o sinal verde que ele precisou para pular em cima de mim pela primeira vez. E num verdadeiro ataque de lambidas gotejantes, comemorou sua vitória como só um bom cão que se presa sabe fazer.

O resto dessa história?
 
Bem, todos já devem ter facilmente deduzido, pois é igual a tantas outras: Fomos felizes para sempre!

(da minha coletânea Capítulos à Parte)

Dedicada ao nosso Nico - Com toda a minha saudade!







15 comentários:

  1. Minha querida! Que saudade de vc! Estava sumida!
    AMEI o seu texto de hj! Me lembrei de quando a Sophie era pequena. Ela acabava com tudo que tinha pela frente!!! Meias, chinelos, almofadas! Meu Deus... Yorkies conseguem ser terríveis e fofos ao mesmo tempo nao é?!?
    Uma ótima semana pra vc e, não suma mais!!!
    Beijo grande!

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  2. Sueli: deliciosa crônica! Bem que no começo seu texto me levou a pensar noutra coisa... Mas para minha surpresa percebi, lá pela metade, uma crônica de muito amor para esses bichinhos-gente que tomam conta de nosso coração. Há tempo que estou com uma crônica para o meu, quero dar-lhe em vida, mas ainda não está pronta. Tudo tem seu tempo, por isso que esta sua saiu ótima. Fiquei presa do começo ao fim.

    Beijão, amiga!

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  3. Adorei, principalmente porque, logo no início a gente imagina outra coisa e lentamente vai se desfechando numa lida declaração de amor a um querido quatro patas.
    Bjs.
    Estela

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  4. Querida amiga , uma semana que se inicia de muita paz, gostei muito da tua crônica, a beleza está justamente em pensarmos de modo diferente, e sermos surpreendidos, muito boa mesmo a tua estória. um abraço fraterna Celina

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  5. Sueli querida!!! Obrigada por suas tão doces palavras... Amei seu comentário, me fez muito FELIZ...:) ... Tbém estou adorando te seguir, gostei de suas reflexões, fiquei apaixonada por esse bebê que parece um anjo sorrindo... e fascinada por Belinha e Verinha, enfim seus blogs são tudo de bom!! Sua sensibilidade incrível. Estarei sempre fazendo visitas. bjos no coração

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  6. Que lindoooooo!!! Adorei a história e, principalmente, pelo seu jeito gostoso de contá-la. Beijão!

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  7. Oi, Sueli!
    Adorei a tua crônica!
    Beijos, querida amiga!

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  8. Ola!
    Adorei ler cada palavra e amei sua historia!!
    Sim ao principio leva-nos a pensar num homem depois é q descobrimos que é um cachorro!!lol!
    O mais espantoso é a pureza do amor seja ele por quem for...
    Darmos importancia ás coisas da vida e aprendermos a viver cada situação que nos rodeia!!Amei,miga!!!

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  9. Oi Sueli!
    Obrigado pela gentil visita ao meu pequeno acervo. Terei que vir por aqui sempre com mais calma e tempo para ler textos saborosos. Tenho saudades de todos os meus amigos que já partiram... Foram muitos e cada um diferente, especial...

    Abraços,

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  10. Olá Sueli!

    Agradeço a sua gentil visita ao meu pequeno acervo. Terei que arrumar tempo para passar minutos saborosos no crônicas e agudas. Sinto saudade tb de todos os meus pequenos amigos que já partoram... foram muitos e cada um era diferente e especial para mim.

    Abraços,

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  11. Sueli que coisa mais linda este caozinho!
    O texto é marilhoso,foi misterioso...
    Eu a todo tempo estava pensando que era um homem e qe ele estava aproveitando de seu dinheiro, kkkkkkk
    voce precisava de me ver imaginando quando lia este texto, rsrsrs
    Seus dizeres me colocou em uma viagem e tudo que eu lia eu colocava a cena na minha mente, criei uma cas na minha mente, os documentos espalhados, o homem deitado no sofa que no final era o cao, kkkkkk
    Maravilhoso ler o que voce escreve!
    E' muito envolvente, por ser palavras simples... E é assim que eu gosto de escrever.
    Odeio ter de ler coisas que a metade da historia a gente deva estar com um dicionario do lado!

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  12. Gostei do texto. Divertido. É bem como você já tinha advertido quando disse que escreve do jeito que fala. Ao ler , parecia estar ouvindo essa história sendo contada. Preciosa em detalhes, com um desfecho surpreendente.
    teve uma hora que li uma frase onde havia a expressão "jogo do vamos-ver-quem-desvia-o-olhar-primeiro." Eu fio campeão desse jogo muito tempo. Agora estou na segunda divisão! rsrrsrsr
    Parabéns pela interessante proposta do blog e o texto leve e envolvente.

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  13. Adoreii o seu blogg...
    aproveito para deixar o endereço do meu:

    Mih_
    http://descalcapoesias.blogspot.com/

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  14. Prezada contadora de histórias.
    Também sou fã de Elisa Lucinda, Stella - minha esposa - presenteou-me com dois livros dela. Tomarei a liberdade de relacionar seu blog entre os meus preferidos...
    Grande abraço,
    Adh

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  15. Hua, kkk, ha, ha, Botafogo já aprontou cada uma quando fugia, como por exemplo, tomar um banho em merda de vaca (é sério, o fundo da minha casa dá para um pasto, ai ele correu para aproveitar a oportunidade, e quando vai eu todo cansado atrás dele, vejo que literamente ele se enfiou na melda, ai vai eu segurando o mala e tudo sujo)...

    Fique com Deus, menina M. Sueli Gallaci.
    Um abraço.

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Sejam bem vindos! Sintam-se a vontade. Comentem, digam o que pensam. Podem rodar a baiana, só não cutuquem a onça com vara curta, ok?... rs