- Sueli Gallacci
- Ascenda a luz – pediu ela.
- Já está acesa.
- Que pena... Gosto de olhar nos teus olhos quando tenho um pedido especial a fazer...
- Não faça isso comigo – implorou ele. A voz saiu num sussurro quase inaudível.
- Já está acesa.
- Que pena... Gosto de olhar nos teus olhos quando tenho um pedido especial a fazer...
- Não faça isso comigo – implorou ele. A voz saiu num sussurro quase inaudível.
Ele já esperava por aquele pedido, entretanto, não se preparou
para ouvi-lo. Decidiu em seu íntimo que esta seria a primeira vez que não
chegariam a um acordo.
Ela insistia no pedido: argumentou que o tempo não era um inimigo
invencível para ele, podia vencê-lo. Ele desejou não ouvir mais nada. Seus
argumentos eram inaceitáveis. Mais do que isso, estava impedido de
aceitá-los.
Ele calou-se. Afastou-se dela e foi se sentar numa cadeira
distante uns quatro passos. Cobriu o rosto com as mãos e chorou mansinho para
não ser ouvido. Ela chamava por ele
entre um gemido e outro. Eram mais agudos agora. As palavras fragmentadas, a
respiração cortada.
- Será o nosso segredo... eu lhe juro – disse ela, com um
sorriso débil.
Ele esfregou a manga do jaleco no nariz num frenesi dolorido
e silencioso. Puxou pela memória, tinha que buscar forças naquelas palavras... Eu juro, por Apolo
médico... nem
remédio mortal, nem um conselho que induza a perda... O Juramento de Hipócrates. Ele era tão jovem e despreparado naquela
época. Nunca imaginou que um dia, lembrar-se daquelas palavras significaria sua
própria salvação. Palavras que recitou segurando o riso com os colegas, na
euforia da formatura. Agora, tinha que lembrar-se delas, e, no entanto, tudo que
lhe vinha à lembrança eram os cabelos dela – fartos e lustrosos. A imagem dela,
linda, dançando pra ele na sala de estar. Sua silhueta curvilínea. Suas mãos
perfeitas de dedos longos. Dedos de pianista, dizia ele. Ele nunca soube por
que ela escolheu ser bailarina e não pianista. Sentia ciúmes da sua profissão.
Suas pernas à mostra o irritava. Sentia ciúmes do jeito que ela inclinava a
cabeça para o lado quando sorria. Quando entrelaçava os dedos na mecha de
cabelos que insistia em deslizar pela testa. Tantas vezes desejou que ela não
usasse aquele perfume que marcava sua presença em todos os lugares. Onde está o
aroma do seu perfume agora?... O éter impregnado por toda a clínica o matou.
Talvez não tenha sido boa ideia transferi-la para sua própria
clínica. Devia tê-la deixado no hospital aos cuidados dos seus colegas. A
rapidez do agravamento da doença deixou-o desnorteado. Sentia-se como um
sonâmbulo impedido de raciocinar. A verdade era que, em todos esses anos, nunca
conseguiu recusar um pedido dela. Mediante a vontade dela, equipou sua clinica às
pressas com todos os recursos disponíveis. Quantos dias haviam se passado desde então? Três?
Quatro?... Ele não sabia, ainda não havia dormido. Vinha-lhe ministrando doses
maciças de analgésicos para neutralizar a dor. Agora, entretanto, o remédio não
surtira efeito.
Em seu íntimo também desejou trazê-la para a clínica. Planejou
em meio ao desespero ficar às sós com ela. Mantê-la acordada enquanto ela
suportasse – não pelas perguntas que deixou de fazer, elas nada mais significavam:
era pelas palavras não ditas, trocadas por gestos que não chegaram a
dimensionar o seu imenso amor. E depois, nada mais faria, a não ser olhar para
ela até se esgotar o tempo...
As palavras dela lhe pareciam mais urgentes agora, mas
nenhuma nota de fraqueza ou medo: somente coragem e determinação.
- Tome a decisão certa para nós dois... não adie mais... liberte-nos...
Ele aproximou-se da cama, tomou a mão dela entre as suas e
disse:
- Tudo bem, meu amor. Vou fazê-la dormir.
Com passos dementes, caminhou até o armário onde guardava os
medicamentos. O curto trajeto lhe pareceu a coisa mais custosa a fazer em toda
sua vida. Ao alcançá-lo, evitou olhar sua imagem refletida no vidro. Abriu a
porta bem devagar. Apanhou o pequeno frasco de rótulo amarelo e segurou-o na
palma da mão. Permaneceu imóvel por alguns instantes, apenas olhando-o
fixamente. Experimentava de um intenso combate interior. O tempo: ele abominava aquele poder sobre o tempo. O desprezível
poder de declarar vil sentença.
A seguir, recolocou-o de volta e apanhou outro.