“O sonho encheu a noite. Extravasou pro meu dia. Encheu minha vida e é dele que eu vou viver. Porque sonho não morre” (Adélia Prado)

3 de ago. de 2010

Retrato de Familia



Sempre fui vidrada em fotografias antigas. Aqueles retratos em preto e branco que hoje estão amarelados pelo tempo. Tenho ajuntado-os ao longo dos anos e hoje possuo um verdadeiro acervo que figuram na minha decoração: avós, bisavós, tios, parentes distantes, vizinhos de parente distantes, e por aí vai... 

Esses retratos me fascinam pelas cenas bucólicas dum tempo que há muito deixou de existir. A importância que eles davam à fotografia fica evidente pela formalidade com a qual se vestiam. Figuras bem apessoadas, mas sempre com olhares melancólicos, ainda que nos lábios um tênue sorriso.

Me pego a perguntar o que estariam elas pensando no exato momento do clic. Parece-me que todos os sentimentos, as angústias, a felicidade, a dor, os segredos, os remorsos, as paixões, os sonhos, tudo, tudo agora também fazem parte de mim. E estão emoldurados e dependurados na minha parede.  

Um dia decidi que destinaria uma parede de uma das salas da minha casa para abrigar minha coleção de retratos antigos. Denominei-a de “Portal das Recordações”. Cuidei pessoalmente da colocação dos quadros e quando terminei me coloquei diante deles para admirá-los. Foi então que notei que havia uma lacuna no meu Portal e falei a respeito disso com o meu marido. 

 - Não tenho nenhum retrato dos seus avós materno e o meu Portal está incompleto... Pode-me conseguir um?

- Por que não procura na casa da minha mãe? – sugeriu ele.

- Eu já fiz isto – respondi – E teus irmãos, também. Só que bem antes de mim.

- Nesse caso não tem jeito – disse ele.

- Como não?... Se tivesse um pouco de boa vontade poderia...

- Ora, meu bem, o nono tem quase cem anos, e a nona está próxima disso... Além do mais, devem estar completamente gagás, nem se lembrarão de mim... Como vou fotografa-los?

Eu sabia que seus argumentos eram para fugir do pedido e resolvi insistir.

- Não estou te pedindo que pegue o primeiro avião e desembarque na Sicília munido de uma câmera fotográfica... Não quero uma foto recente, sabe que eu gosto de retratos antigos...

- Então, está resolvido! – interrompeu-me– Tirarei férias no ano que vem e iremos à Europa. Daremos um pulo até lá e poderá escolher o que mais lhe agradar...

- Não me venha com essa! – retruquei fula da vida – Você está me prometendo essa viagem há mais de quinze anos!

- Está sendo infantil e caprichosa!... Não sei que diferença faz dois velhos a mais, dois velhos a menos nesse teu Portal de sei lá o quê...

- Portal das Recordações – corrigi ressentida. Pode não ser importante pra você, mas é pra mim... Mas não espero que entenda isto – choraminguei.

- Está bem, está bem... O que quer que eu faça, afinal?

- Poderia escrever uma carta à sua tia na Sicília. Ela deve possuir belos retratos dos nonos e não se importaria em nos mandar um.

- Se é só isto, tudo bem. Escreverei um dia desses.


Dias depois voltei a tocar no assunto com ele, e sabia que ainda não seria o suficiente. Se quisesse a fotografia tinha que fazê-lo por mais meia dúzia de vezes. No mínimo.

Quão grande foi a minha surpresa ao descobrir que não seria assim desta vez.

 - Não te contei? – perguntou ele exageradamente admirado – Eu já escrevi à tia Manô faz um tempão... Tua encomenda deve estar estourando por aí.

- Talvez chegue amanhã, é dia de passar o carteiro – disse animada.

- Oh, não, passei o endereço do escritório... Por questões de segurança.

- Que segurança?! Não acha seguro recebermos correspondência em nossa própria casa?

- Não é isto... Eu só não confio nesse carteiro. No ano passado perdi duas correspondências importantes.

- Você não perdeu as correspondências, foi o teu Dobermann que comeu.

- Bem lembrado! É mais um motivo pra eu recebê-la lá. Já imaginou se o Adamastor resolve comer os nonos?

Bem, não me restava nada a fazer a não ser esperar. Contudo, não tive que esperar tanto assim. Logo no dia seguinte ele colocou a encomenda em minhas mãos: estava dentro de uma pasta semitransparente, dessas de guardar documentos. Eu abri emocionada, afinal, era a primeira vez que ia vê-los. Por um momento deixei-me guiar pelos caminhos que levam ao passado. Como eles estavam lindos naqueles trajes antigos e impecáveis! Mais pareciam um conde e uma condessa saídos de algum condado distante. O nono usava gravata borboleta e um terno risca de giz com colete. E a nona, então?... Uma verdadeira Dama naquele chapéu enfeitado com flores e fitas. Eu estava em êxtase! Poderia finalmente estudar cuidadosamente os seus traços... Examinar todos os detalhes... E quem sabe, identificar semelhanças com os nossos filhos...

Mas isto ficaria para depois. Tinha pressa em emoldurá-lo e completar o meu Portal. Corri para o shopping e escolhi a melhor e mais bela moldura sem me importar com o preço. Ficou acertado que eu voltaria três dias depois para apanhá-la.

No dia marcado estava eu lá logo pela manhã. O rapaz que me atendeu se dirigiu a mim assim que entrei. Parecia nervoso.

- Tivemos um probleminha com a foto da senhora, mas não se preocupe que vamos resolver tudo.

- Probleminha? Que probleminha??? – senti-me gelar.

- Um funcionário derrubou um copo de chocolate quente sobre ela, mas ele já foi despedido, a senhora não precisa...

- Como assim??... Acha que está tudo resolvido só por que despediram o funcionário?... Aquele retrato viajou milhas e milhas até chegar às minhas mãos!

- Não viajou, não, senhora – disse o rapaz. Agora ele exibia um meio-sorriso.

- Como não?... Ele veio da Sicília!!

 - Aquele retrato foi tirado aqui mesmo no shopping, num estúdio que fica lá no segundo piso... A senhora não viu o carimbo atrás?

- Carimbo?... não... Você tem certeza?

- Claro que tenho! E aquele na fotografia não é outro se não o seu Tônho dos caixotes e a Adelaide, sua mulher. Eles são mendigos e moram ali no viaduto. Todo mundo aqui conhece eles.

Nesse momento senti meu sangue entrar em ebulição. Desta vez o Norberto tinha ido longe demais a fim de me enrolar. Isto não podia ficar assim! Tiraria essa história a limpo custe o que custasse. Ou faria coisa ainda pior.

Decepcionada e ofendida peguei o carro e rumei para o viaduto. Melhor dizendo, embaixo dele.

Logo que estacionei, percorri os olhos entre os mendigos a procura dos personagens do meu tão sonhado objeto do desejo. Estavam bem diferentes agora, mas eu os reconheci prontamente.

Desci do carro e me aproximei deles. Abri minha bolsa, tirei o retrato e mostrei ao homem.

- Conhece? – perguntei.

- Mas é claro que eu conheço! – afirmou enfaticamente – É o Dr. Norberto. Um santo homem!... Passa por aqui de vez em quando e me deixa uns trocados... Ele até prestou uma homenagem pra mim e pra minha Adelaide.

- Que bom! – disse eu forçando um sorriso – Vocês merecem mesmo uma homenagem...

Naquela noite me aprontei com especial atenção: vesti meu melhor vestido, prendi os cabelos e caprichei na maquiagem. Quando o Norberto chegou, eu estava à porta esperando por ele. Recebi-o com um caloroso beijo, e rapidamente puxei-o pelo braço até a entrada da sala de jantar. Ele empacou assim que botou o pé na porta. Parecia que ia derreter de tão pálido que ficou.

- O que significa isso???

Eu abri um largo sorriso, indiquei seu lugar à cabeceira da mesa e disse:  

- Nada demais, meu amor... Apenas convidei seus avós e os amigos para o jantar.

(da minha coletânea Capítulos à Parte)

5 comentários:

  1. Minha querida!!!
    Primeiro preciso deixar registrado que amo fotos preto e branco!
    Pelo menos escondem nossas imperfeções. rs
    E segundo... o que foi isso? rsrs Acho que se meu marido me apronta uma dessas, ele será um homem morto em pouco, muito pouco tempo! rsrs
    Um beijão!

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  2. A palavra foi dada para explicar os pensamentos. Os pensamentos são retratos das coisas da mesma forma que as palavras são retratos dos nossos pensamentos .

    Beijo.

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  3. Sueli: belo texto, mas não fique com raiva de mim, mas esta do seu marido foi demais! Olha... Arranjar uma ‘saída’ desta, achei genial. O texto prende do começo ao fim, e fui indo, mas rindo muito. O diálogo entre você e seu marido está ótimo, bem coisa de casal... E você explorou isso muito bem, as coisas são assim mesmo.
    Valeu ter lido, só valeu! Este texto, dentre todos que li aqui e no outro blog, foi o que mais gostei. Hilário.
    Ah...ia esquecendo, me deste uma boa dica com as fotos na bandeja! Achei ‘divinas’.

    Beijão duplo.
    Tais luso

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  4. Sueli,


    Amei ter encontrado teus blogs, lindos, de uma beleza convencedora!


    Um texto sensacional, desses escritos por mestres, de um começo, meio e fim encantando o leitor, instigando-o a leitura! PA-RA-BÉNS!
    Tens um grande recurso dos grandes escritores: o ápice de teu escrito é surpreendedor!

    ...o amante é capaz de tudo para agradar ou enganar a pessoa amada... ...tudo é perdoável, quando o enganado se vinga! rsrs


    LINDOOOO blog!


    Li outros postados, também gostei muito!




    PS: "MUITO OBRIGADA"!


    UM abraço sertanejo, Marluce

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  5. Hua, kkk, ha, ha, quem disse que vingança que se come num prato frio?!

    Hua, kkk, ha, ha, mas fala sério, ele pelo menos se esforçou para a farsa (eu prefiro evitar, porque eu não consigo mentir, começo a suar e tal, ai me pegam no pulo)...

    Fique com Deus, menina M. Sueli Gallacci.
    Um abraço.

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Sejam bem vindos! Sintam-se a vontade. Comentem, digam o que pensam. Podem rodar a baiana, só não cutuquem a onça com vara curta, ok?... rs