Sempre fui vidrada em fotografias antigas. Aqueles retratos em
preto e branco que hoje estão amarelados pelo tempo. Tenho ajuntado-os ao longo
dos anos e hoje possuo um verdadeiro acervo que figuram na minha decoração: avós,
bisavós, tios, parentes distantes, vizinhos de parente distantes, e por aí
vai...
Esses retratos me fascinam pelas cenas bucólicas dum tempo que há
muito deixou de existir. A importância que eles davam à fotografia fica evidente
pela formalidade com a qual se vestiam. Figuras bem apessoadas, mas sempre
com olhares melancólicos, ainda que nos lábios um tênue sorriso.
Me pego a perguntar o que estariam elas pensando no exato momento
do clic. Parece-me que todos os sentimentos, as angústias, a felicidade, a dor,
os segredos, os remorsos, as paixões, os sonhos, tudo, tudo agora também fazem
parte de mim. E estão emoldurados e dependurados na minha parede.
Um dia decidi que destinaria uma parede de uma das salas da minha
casa para abrigar minha coleção de retratos antigos. Denominei-a de “Portal das
Recordações”. Cuidei pessoalmente da colocação dos quadros e quando terminei me
coloquei diante deles para admirá-los. Foi então que notei que havia uma lacuna
no meu Portal e falei a respeito disso com o meu marido.
- Não tenho nenhum retrato dos seus avós materno e o meu
Portal está incompleto... Pode-me conseguir um?
- Por que não procura na casa da minha mãe? – sugeriu ele.
- Eu já fiz isto – respondi – E teus irmãos, também. Só que bem
antes de mim.
- Nesse caso não tem jeito – disse ele.
- Como não?... Se tivesse um pouco de boa vontade poderia...
- Ora, meu bem, o nono tem quase cem anos, e a nona está próxima
disso... Além do mais, devem estar completamente gagás, nem se lembrarão de mim...
Como vou fotografa-los?
Eu sabia que seus argumentos eram para fugir do pedido e resolvi
insistir.
- Não estou te pedindo que pegue o primeiro avião e desembarque na
Sicília munido de uma câmera fotográfica... Não quero uma foto recente, sabe
que eu gosto de retratos antigos...
- Então, está resolvido! – interrompeu-me– Tirarei férias no ano
que vem e iremos à Europa. Daremos um pulo até lá e poderá escolher o que mais
lhe agradar...
- Não me venha com essa! – retruquei fula da vida – Você está me
prometendo essa viagem há mais de quinze anos!
- Está sendo infantil e caprichosa!... Não sei que diferença faz
dois velhos a mais, dois velhos a menos nesse teu Portal de sei lá o quê...
- Portal das Recordações – corrigi ressentida. Pode não ser
importante pra você, mas é pra mim... Mas não espero que entenda isto –
choraminguei.
- Está bem, está bem... O que quer que eu faça, afinal?
- Poderia escrever uma carta à sua tia na Sicília. Ela deve possuir
belos retratos dos nonos e não se importaria em nos mandar um.
- Se é só isto, tudo bem. Escreverei um dia desses.
Dias depois voltei a tocar no assunto com ele, e sabia que ainda
não seria o suficiente. Se quisesse a fotografia tinha que fazê-lo por mais
meia dúzia de vezes. No mínimo.
Quão grande foi a minha surpresa ao descobrir que não seria assim
desta vez.
- Não te contei? –
perguntou ele exageradamente admirado – Eu já escrevi à tia Manô faz um
tempão... Tua encomenda deve estar estourando por aí.
- Talvez chegue amanhã, é dia de passar o carteiro – disse
animada.
- Oh, não, passei o endereço do escritório... Por questões de
segurança.
- Que segurança?! Não acha seguro recebermos correspondência em
nossa própria casa?
- Não é isto... Eu só não confio nesse carteiro. No ano passado
perdi duas correspondências importantes.
- Você não perdeu as correspondências, foi o teu Dobermann que
comeu.
- Bem lembrado! É mais um motivo pra eu recebê-la lá. Já imaginou
se o Adamastor resolve comer os nonos?
Bem, não me restava nada a fazer a não ser esperar. Contudo, não
tive que esperar tanto assim. Logo no dia seguinte ele colocou a encomenda em
minhas mãos: estava dentro de uma pasta semitransparente, dessas de guardar
documentos. Eu abri emocionada, afinal, era a primeira vez que ia vê-los. Por
um momento deixei-me guiar pelos caminhos que levam ao passado. Como eles
estavam lindos naqueles trajes antigos e impecáveis! Mais pareciam um conde e
uma condessa saídos de algum condado distante. O nono usava gravata borboleta e
um terno risca de giz com colete. E a nona, então?... Uma verdadeira Dama
naquele chapéu enfeitado com flores e fitas. Eu estava em êxtase! Poderia
finalmente estudar cuidadosamente os seus traços... Examinar todos os
detalhes... E quem sabe, identificar semelhanças com os nossos filhos...
Mas isto ficaria para depois. Tinha pressa em emoldurá-lo e
completar o meu Portal. Corri para o shopping e escolhi a melhor e mais bela
moldura sem me importar com o preço. Ficou acertado que eu voltaria três dias
depois para apanhá-la.
No dia marcado estava eu lá logo pela manhã. O rapaz que me
atendeu se dirigiu a mim assim que entrei. Parecia nervoso.
- Tivemos um probleminha com a foto da senhora, mas não se
preocupe que vamos resolver tudo.
- Probleminha? Que probleminha??? – senti-me gelar.
- Um funcionário derrubou um copo de chocolate quente sobre ela,
mas ele já foi despedido, a senhora não precisa...
- Como assim??... Acha que está tudo resolvido só por que
despediram o funcionário?... Aquele retrato viajou milhas e milhas até chegar
às minhas mãos!
- Não viajou, não, senhora – disse o rapaz. Agora ele exibia um meio-sorriso.
- Como não?... Ele veio da Sicília!!
- Aquele retrato foi tirado aqui mesmo
no shopping, num estúdio que fica lá no segundo piso... A senhora não viu o
carimbo atrás?
- Carimbo?... não... Você tem certeza?
- Claro que tenho! E aquele na fotografia não é outro se não o seu
Tônho dos caixotes e a Adelaide, sua mulher. Eles são mendigos e moram ali no viaduto.
Todo mundo aqui conhece eles.
Nesse momento senti meu sangue entrar em ebulição. Desta vez o
Norberto tinha ido longe demais a fim de me enrolar. Isto não podia ficar
assim! Tiraria essa história a limpo custe o que custasse. Ou faria coisa ainda
pior.
Decepcionada e ofendida peguei o carro e rumei para o viaduto. Melhor
dizendo, embaixo dele.
Logo que estacionei, percorri os olhos entre os mendigos a procura
dos personagens do meu tão sonhado objeto do desejo. Estavam bem diferentes
agora, mas eu os reconheci prontamente.
Desci do carro e me aproximei deles. Abri minha bolsa, tirei o
retrato e mostrei ao homem.
- Conhece? – perguntei.
- Mas é claro que eu conheço! – afirmou enfaticamente – É o Dr.
Norberto. Um santo homem!... Passa por aqui de vez em quando e me deixa uns
trocados... Ele até prestou uma homenagem pra mim e pra minha Adelaide.
- Que bom! – disse eu forçando um sorriso – Vocês merecem mesmo
uma homenagem...
Naquela noite me aprontei com especial atenção: vesti meu melhor
vestido, prendi os cabelos e caprichei na maquiagem. Quando o Norberto chegou,
eu estava à porta esperando por ele. Recebi-o com um caloroso beijo, e
rapidamente puxei-o pelo braço até a entrada da sala de jantar. Ele empacou assim
que botou o pé na porta. Parecia que ia derreter de tão pálido que ficou.
- O que significa isso???
Eu abri um largo sorriso, indiquei seu lugar à cabeceira da mesa e
disse:
- Nada demais, meu amor... Apenas convidei seus avós e os amigos
para o jantar.
(da minha coletânea Capítulos à Parte)
Minha querida!!!
ResponderExcluirPrimeiro preciso deixar registrado que amo fotos preto e branco!
Pelo menos escondem nossas imperfeções. rs
E segundo... o que foi isso? rsrs Acho que se meu marido me apronta uma dessas, ele será um homem morto em pouco, muito pouco tempo! rsrs
Um beijão!
A palavra foi dada para explicar os pensamentos. Os pensamentos são retratos das coisas da mesma forma que as palavras são retratos dos nossos pensamentos .
ResponderExcluirBeijo.
Sueli: belo texto, mas não fique com raiva de mim, mas esta do seu marido foi demais! Olha... Arranjar uma ‘saída’ desta, achei genial. O texto prende do começo ao fim, e fui indo, mas rindo muito. O diálogo entre você e seu marido está ótimo, bem coisa de casal... E você explorou isso muito bem, as coisas são assim mesmo.
ResponderExcluirValeu ter lido, só valeu! Este texto, dentre todos que li aqui e no outro blog, foi o que mais gostei. Hilário.
Ah...ia esquecendo, me deste uma boa dica com as fotos na bandeja! Achei ‘divinas’.
Beijão duplo.
Tais luso
Sueli,
ResponderExcluirAmei ter encontrado teus blogs, lindos, de uma beleza convencedora!
Um texto sensacional, desses escritos por mestres, de um começo, meio e fim encantando o leitor, instigando-o a leitura! PA-RA-BÉNS!
Tens um grande recurso dos grandes escritores: o ápice de teu escrito é surpreendedor!
...o amante é capaz de tudo para agradar ou enganar a pessoa amada... ...tudo é perdoável, quando o enganado se vinga! rsrs
LINDOOOO blog!
Li outros postados, também gostei muito!
PS: "MUITO OBRIGADA"!
UM abraço sertanejo, Marluce
Hua, kkk, ha, ha, quem disse que vingança que se come num prato frio?!
ResponderExcluirHua, kkk, ha, ha, mas fala sério, ele pelo menos se esforçou para a farsa (eu prefiro evitar, porque eu não consigo mentir, começo a suar e tal, ai me pegam no pulo)...
Fique com Deus, menina M. Sueli Gallacci.
Um abraço.