“O sonho encheu a noite. Extravasou pro meu dia. Encheu minha vida e é dele que eu vou viver. Porque sonho não morre” (Adélia Prado)

27 de set. de 2010

Eu ODEIOOOOO ela!


Existem pessoas que bastam ir uma só vez a um lugar e decoram o caminho. Não é o meu caso. Sou muito distraída, tenho que ir no mínimo umas três vezes. É por esse motivo que sempre mantive no meu carro o bom e velho Guia 4 Rodas.

Nunca gostei de GPS e nunca quis ter um. Detesto aquela voz irritante me indicando o caminho, fico com aquela sensação de que estou com uma palpiteira ao meu lado expondo toda a minha burrice. Prefiro fazer meu trajeto ouvindo uma musiquinha e, quando me perco, paro, consulto o Guia, ou apelo para o quem tem boca vai à Roma”.

Bem que alguém poderia inventar um GPS especialmente para mulheres, com uma voz masculina, grave, aveludada, sensual... Que falasse bem devagar e repetisse quantas vezes fossem necessárias. E que não se esquecesse de elogiar quando a gente fizesse tudo direitinho h ó o o o o, mas que mulher inteligente!”

Mas eu sou uma mulher moderna, certo? Tenho que me atualizar, e além do mais, tenho várias amigas que tem GPS e eu não podia ficar por baixo.

Foi por isso que decidi experimentar a coisa. Pedi emprestado o do meu marido e escolhi um lugar aqui mesmo na minha cidade para a minha estreia. Quando estivesse craque me aventuraria ir à São Paulo.

Minutos antes de sair, programei o negócio do jeito que meu marido me ensinou e lá fui eu, crente que na volta ligaria para uma amiga e daria aquela esnobada básica. Tinha até ensaiado umas falas.

Entrei no carro e mal saí da garagem ela já lascou a primeira frase: a-trinta-metros-vire-a-direita.

Dobre-ligeiramente-a-esquerda.
Mantenha-se-a-direita.

Ok, eu começava a ficar irritada, mas tudo que fiz foi pensar dá um tempo, sei bem sair do meu condomínio!

Logo de cara percebi que ela estava me levando direto para o pedágio, mas eu tenho meus macetes, conhecia bem aquele trecho e segui por um caminho alternativo ignorando seu falatório. Vai vendo como sou mais esperta que você...

Até parece que ela adivinhou meus pensamentos, pois foi só eu colocar os pneus numa estradinha totalmente deserta e desconhecida, ela apagou, ficou muda. MU-DI-NHA! Justamente quando eu mais precisava dela!

E agora?... finjo que não entendi a vingança e sigo meu caminho, ou volto pra casa com uma desculpa esfarrapada?

Quando a estradinha acabou e estava prestes a entrar na cidade, decidi dar à ela mais uma chance... tá, confesso, pedir à ela mais uma chance. Estacionei o carro num acostamento perigosíssimo e reprogramei tudo novamente.

Foi aí que começou o meu calvário.

Devo ter feito algo muito grave, pois ela endoidou de vez! Disparou a falar, mas não dizia coisa com coisa e continuava apagada.
Sempre tive dificuldade com esse negócio de esquerda/direita, levo alguns segundos para assimilar. “O lado direito é o lado da mão que você escreve” – dizia minha mãe quando eu era criança. Brrrrrrrr, não dá para escrever no trânsito, né, mãnhêeeeeeeee!!!

Não sei como aquilo aconteceu, mas de repente me vi em outra estradinha deserta. Eu estava completamente perdida. PER-DI-DI-NHA DA SILVA!!! E aqueles apitos do você errou dinovo me deixavam doida! Recalculando-a-rota... recalculando-a-rota... Acho que nuca mais eu vou esquecer essa frase.

A essa altura eu não pensava desaforos, estava falando em voz alta “O quê? Como? Não entendi. Repete sua vadia! Repete!"

Vire-a-direita... e PA! invadi uma área militar!

Tão rápido como um relâmpago apareceram três soltados apontando seus fuzis direto pra minha cabeça!

Instintivamente fui escorregando no banco para me safar dos tiros. O que veio depois foi a parte mais hilária de todo esse episódio.

Como não ouve tiros, fui levantando bem devagar, e, repentinamente, levei as duas mãos para o alto (daquele jeito mesmo como fazem os bandidos quando são surpreendidos pela polícia). Comecei a gesticular com as mãos tipo ó, ó, vou tirar o cinto... ó, ó, vou sair do carro... ok? ok? – Tudo com as mãos lá no alto.

Enquanto fazia mímicas, imaginei meu marido gastando as tufas com o advogado para me soltar da prisão do quartel... e meus filhos assistindo a reportagem no Jornal Nacional .... ela diz que a culpa foi do GPS, mas a Segurança Nacional vai investigar o caso...”

Afastei imediatamente aqueles pensamentos, não era hora para pensar nisso, era hora de pensar numa boa desculpa para aquela invasão.

Mas será mesmo que eu precisava gastar minha criatividade pra elaborar uma explicação convincente?... Será que eles não estavam vendo que se tratava de uma senhora perdida? (nessas horas é um alivio ser uma senhora, né...).

Desci do carro e me preparava para abrir a boca quando ela disse: recalculando-a-rota...

Estão ouvindo? - disse eu. A culpa é DELA!

23 de set. de 2010

É Primavera...



Hei! Estação nova chegando! Vamos lá!
Na primavera, que tal mudar a forma de pintar?
É isso mesmo! Sugiro aproveitar pétalas de flores,
folhas, vegetais, terra e outras cores naturais, fáceis de encontrar.

Recolha também juras de amor sob a lua cheia,
mãos entrelaçadas de namorados a caminhar na areia.
Resgate sonhos antigos, planos e ilusões até.
Experimente uma iluminada idéia, com toques de fé.


Junte fragmentos de angústia, cacos de dor e
dê realce à pintura, com a cor complementar.
Pegue aqueles tons suaves de ternura e paz,
algum filete de fonte cristalina que a sede desfaz.
Vá com calma, construa seu caminho com arte,
as pegadas serão seguidas, mesmo que em parte.


Solte a voz, cante para o sol, mesmo desafinado.
Poderá acompanhar você, um coral, em trinados.
Plante sementes de alegria, vida e esperança.
Perdoe, é possível, e ajude a curar lembranças.
Quem sabe, uma poda aqui, outra ali, faz parte.
Mas que seja com carinho e um pouco de arte.


Vamos lá, mude a forma de pintar!
Que tal, uns riscos e rabiscos de poetar?
Para mim, poema-primavera é assim:
Uma braçada multicor de belas flores colhidas
no jardim e nas estradas da vida,
que a gente vai contemplando e ajeitando.
No desejo de que fique o mais correto,
envolvemos amores e amarramos flores
com fitas generosas de cuidados e afeto.

Beijos de ternura!
(extraido)

15 de set. de 2010

O LOBISOMEM



Meu irmão ergueu o arame farpado para eu passar.

- Passa logo! Passa logo!... Lerda! – cochichou ele, impaciente.
- Não sou lerda, eu carrego os ovos – respondi.

- Por que eu carrego os ovos? – perguntei.
- Porque você é mais nova.
- E o que tem isso?
- Gente mais nova carrega coisas pra gente mais velha.
- Quem disse?
-
Eu disse.

Com rapidez ganhamos a rua que ladeava a chácara do Seu Adolfinho, nosso vizinho de fim de rua. Dobramos a esquina e alcançamos o portão da frente. Postamo-nos bem debaixo da placa onde estava escrito: VENDE-SE OVOS CAIPIRAS.

Meu irmão bateu palmas, como era o combinado da parte dele. Eu, de minha parte, segurava bem firme as bordas da saia do meu vestido.

- Tá mostrando a calcinha – ralhou meu irmão.
- Se soltar o vestido, caem os ovos – repliquei.
- Mas é feio mostrar a calcinha – disse, ele.
- Eu sou criança e criança pode mostrar a calcinha.
- Quem disse?
-
Eu disse.

O velho solteirão logo apareceu na porta, espichou o pescoço e franziu os olhos de vista curta.

- O que quer agora, moleque? pintos de novo?
- Ovos dessa vez.
- Não sabe ler a placa? Eu vendo ovos, tenho muitas galinhas, não preciso comprar.
- Mas o senhor vende a quatro cruzeiros a dúzia e eu estou vendendo a dois – argumentou meu irmão.

Durante as negociações, eu devia ficar calada, pois ele dizia que era melhor para os negócios.

- ... Se comprar de mim pode lucrar agora mesmo. Não precisa esperar as galinhas botarem para ajuntar.
- Sei... Quantas dúzias têm? – perguntou o velho.
- Duas e meia.

Ele coçou a cabeça por cima do chapéu.

- Espera aí que eu vou descer com o dinheiro.

Ao final das transações rumamos rua acima, em direção de casa. Normalmente, a divisão do dinheiro era feita em segredo, no fundo do quintal, e depois, cada qual gastava do seu jeito. Mas foi diferente dessa vez.

- Vai indo na frente que eu vou gastar a minha parte agora – informou meu irmão quando chegarmos em frente ao bar do Seu Raul.
- Isso nunca! – protestei prontamente – Quero a minha parte quando você pegar a sua!
- Mas tá numa nota só.
- Então vamos rasgar no meio.
- Isso que não!

Estávamos num impasse. Mas eu tinha a solução:

- Vamos entrar juntos. Você gasta sua parte que eu gasto a minha.
- Mas no bar do Seu Raul não vende quebra-queixo...
- Você compra o cigarro e me dá o troco.
- Quem falou em cigarro?
-
Eu falei. Eu sei.
- Que conversa!...

Retomando a rua.

- Será que é verdade? – perguntei.
- O quê?
- Que o Seu Adolfinho é lobisomem.
- Não, ele é avarento.
- Avarento também pode ser lobisomem.
- Conversa afiada.
 

- Lobisomem sabe de tudo?
- Não sei. Por quê?
- Porque se ele for, vai saber que vendemos os ovos que roubamos dele pra ele mesmo.
- Não vai saber se ninguém contar.
- Quem garante?
-
Eu garanto.

Um pouco mais perto de casa.

- Lobisomem consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo?
- Por quê?
- Porque eu tô vendo Seu Adolfinho descendo a rua em nossa direção!

Evidente que descobrimos mais tarde que o corre-corre foi em vão. Seu Adolfinho, o velho franzino de andar meio troncho e encurvado, não era lobisomem com poderes sobrenaturais. Ele tinha um irmão gêmeo idêntico que resolveu vir visitá-lo justamente naquele dia.

O dinheiro?... Bem, esse se perdeu quando saímos em disparada. Mas lucrei mais com o susto, pois hoje tenho uma boa história para contar.


(Da minha coletânea "Capítulos à Parte")