“O sonho encheu a noite. Extravasou pro meu dia. Encheu minha vida e é dele que eu vou viver. Porque sonho não morre” (Adélia Prado)

15 de set. de 2010

O LOBISOMEM



Meu irmão ergueu o arame farpado para eu passar.

- Passa logo! Passa logo!... Lerda! – cochichou ele, impaciente.
- Não sou lerda, eu carrego os ovos – respondi.

- Por que eu carrego os ovos? – perguntei.
- Porque você é mais nova.
- E o que tem isso?
- Gente mais nova carrega coisas pra gente mais velha.
- Quem disse?
-
Eu disse.

Com rapidez ganhamos a rua que ladeava a chácara do Seu Adolfinho, nosso vizinho de fim de rua. Dobramos a esquina e alcançamos o portão da frente. Postamo-nos bem debaixo da placa onde estava escrito: VENDE-SE OVOS CAIPIRAS.

Meu irmão bateu palmas, como era o combinado da parte dele. Eu, de minha parte, segurava bem firme as bordas da saia do meu vestido.

- Tá mostrando a calcinha – ralhou meu irmão.
- Se soltar o vestido, caem os ovos – repliquei.
- Mas é feio mostrar a calcinha – disse, ele.
- Eu sou criança e criança pode mostrar a calcinha.
- Quem disse?
-
Eu disse.

O velho solteirão logo apareceu na porta, espichou o pescoço e franziu os olhos de vista curta.

- O que quer agora, moleque? pintos de novo?
- Ovos dessa vez.
- Não sabe ler a placa? Eu vendo ovos, tenho muitas galinhas, não preciso comprar.
- Mas o senhor vende a quatro cruzeiros a dúzia e eu estou vendendo a dois – argumentou meu irmão.

Durante as negociações, eu devia ficar calada, pois ele dizia que era melhor para os negócios.

- ... Se comprar de mim pode lucrar agora mesmo. Não precisa esperar as galinhas botarem para ajuntar.
- Sei... Quantas dúzias têm? – perguntou o velho.
- Duas e meia.

Ele coçou a cabeça por cima do chapéu.

- Espera aí que eu vou descer com o dinheiro.

Ao final das transações rumamos rua acima, em direção de casa. Normalmente, a divisão do dinheiro era feita em segredo, no fundo do quintal, e depois, cada qual gastava do seu jeito. Mas foi diferente dessa vez.

- Vai indo na frente que eu vou gastar a minha parte agora – informou meu irmão quando chegarmos em frente ao bar do Seu Raul.
- Isso nunca! – protestei prontamente – Quero a minha parte quando você pegar a sua!
- Mas tá numa nota só.
- Então vamos rasgar no meio.
- Isso que não!

Estávamos num impasse. Mas eu tinha a solução:

- Vamos entrar juntos. Você gasta sua parte que eu gasto a minha.
- Mas no bar do Seu Raul não vende quebra-queixo...
- Você compra o cigarro e me dá o troco.
- Quem falou em cigarro?
-
Eu falei. Eu sei.
- Que conversa!...

Retomando a rua.

- Será que é verdade? – perguntei.
- O quê?
- Que o Seu Adolfinho é lobisomem.
- Não, ele é avarento.
- Avarento também pode ser lobisomem.
- Conversa afiada.
 

- Lobisomem sabe de tudo?
- Não sei. Por quê?
- Porque se ele for, vai saber que vendemos os ovos que roubamos dele pra ele mesmo.
- Não vai saber se ninguém contar.
- Quem garante?
-
Eu garanto.

Um pouco mais perto de casa.

- Lobisomem consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo?
- Por quê?
- Porque eu tô vendo Seu Adolfinho descendo a rua em nossa direção!

Evidente que descobrimos mais tarde que o corre-corre foi em vão. Seu Adolfinho, o velho franzino de andar meio troncho e encurvado, não era lobisomem com poderes sobrenaturais. Ele tinha um irmão gêmeo idêntico que resolveu vir visitá-lo justamente naquele dia.

O dinheiro?... Bem, esse se perdeu quando saímos em disparada. Mas lucrei mais com o susto, pois hoje tenho uma boa história para contar.


(Da minha coletânea "Capítulos à Parte")

11 comentários:

  1. Mas que caloteira, hein dona Sueli?!! Realmente estou com medo de negociar com você... Mas como é gostoso relembrar estas histórias de criança, não? Eu também lembro algumas, só que eu não era tão criança. Já era bem grandinha. Vou te contar umazinha: quando eu trabalhava com bijuterias, fiz dezenas de colares e brincos pra mim. Depois de muito usar e de ter enjoado daquela cacarecada toda, vendi todas para uma loja que eu fornecia ‘novidades’... E ainda disse, para os outros, que vendi antiguidades!!

    Mais algumas te conto por email...Aqui vai pegar mal!
    Beijão, rsrs.

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  2. Ahahahaha! Que ótimo!!! Pobre Seu Adolfinho!!! Mal sabe ele o quanto ele lucrou! rsrs
    Suas cronicas sao sempre uma delicia de ler, querida!! Estava com saudade!

    Um beijao e um ótimo fim de semana!

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  3. Boa tarde, Sueli.

    BSF foi uma paixão do passado, moça linda, olhos sonhadores e idéias avoadas – pelo menos no entendimento do poeta então despeitado (?) pela rejeição.
    Enfim, rendeu muitos versos, escolhi alguns dos menos ruins para exibir no blog. Sobre paixões do passado, em 31 de março postei “Amores”, uma poesia que enumera alguns amores verdadeiros entremeados com fictícios deste lerdo e incorrigível romântico...

    Grande abraço, grato pela visita!

    Adh

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  4. Essas crônicas evocativas são deliciosas, valeu!
    Abç,
    Adh

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  5. Seu texto me encatou e estimulou muito meu apredizado.

    Abraços de bom fim de semana

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  6. Que malandragem... rsrsrs Adorei ler!
    Eu também nao fui facil, vivia so no meio de meus dois irmaos e fazia tanta arte que no final acabava em coro de sinto, e tinhamos de fazer fila par esperar a nossa vez, assim a gente sentia medo no esperar... O primeiro era sempre o que inventou a obra de arte!kkkkkk
    Mas essa de pegar ovos e vender pro proprio dono eu nunca fiz! kkkk

    Entrei em uma loja um dia pra comprar um jeans com o dinheiro que minha mae me deu, e gostei de dois jeans mas o dnheiro dava so para comprar um, entao eu vesti o outro por baixo do meu jeans e sai da loja comprando um, o outro eu peguei emprestado, kkkkk peguei emprestado porque minha mae me fez devolver, rsrsrs.
    Que mico que eu paguei, nunca mais fiz isto, a vergonha que passei me fez aprender, rsrsrs
    Ahhh uma vez na Paroquia da nossa igreja eu roubei um santinho daqueles que tem dizeres atras... Me sinto culpada até hoje porque era a casa de Deus, pedi tanto perdao, rsrsr espero que tenha me perdoado, era por uma boa causa, eu queria ler sempre em minha casa! rsrs
    Beijos no coraçao!

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  7. Hua, kkk, ha, ha, você pegaram uma boa peça nele, mas já fiz algo parecido, eu mais um amigo fomos a uma chacará vizinha a minha casa, sendo lá roubamos algumas frutas, mas o vigia da chacará acabou nos achando e atirando com uma espiganda de sal, ai vai eu mais o meu amigo correndo em meio do mato...

    Quando esperavamos fugir ao escalar um muro, o meu amigo foi primeiro (porque ele menor e precisava de ajuda para subir), porém quase o mesmo cai numa ribanceira ao lado do muro, nota o vigia atrás da gente...

    Contudo, conseguimos escapar com o cara praguejando atrás de gente.

    Fique com Deus, menina M. Sueli Gallaci.
    Um abraço.

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  8. Sueli,

    Um conto encantador,tão gostoso de ler! Surpreendente, belíssima narrativa!

    Parabéns!

    Como são gostosos esses textos que relatam travessuras!Tão caloroso!!!! LINDO!

    Um grande abraço minha querida, Marluce

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  9. Aprontei muitotambém quando pequeno e minha comparsa era minha irmã, linda crônica leve e solta PARABENS!

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  10. Não creio que essa história é verdadeira! Ah, estou curiosa demais!!! É recordação de infância apimentada pelo talento literário ou tudo fruto de uma imaginação fabulosa, que me prendeu do início ao fim?!

    Adorei cada parágrafo, queria saber como tudo ia terminar! Seu Adolfinho, tão esperto, foi passado para trás por duas criança... avareza dá nisso, de tanto que quer lucrar sai perdendo!

    E os espertinhos, depois do encontro com o lobisomem, será que voltaram a furtar ovos?! rsrsrs Ó dúvida cruel... rsrsrsrs

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Sejam bem vindos! Sintam-se a vontade. Comentem, digam o que pensam. Podem rodar a baiana, só não cutuquem a onça com vara curta, ok?... rs